A mobilidade inteligente poderá valer mais de um bilião de euros dentro de dez anos. Um negócio que os tradicionais fabricantes de automóveis não querem perder, e que passa pela mobilidade autónoma e, sobretudo, pela partilha de carro. Pela primeira vez na sua longa história, os arquirrivais de marcas premium de automóveis, BMW e Mercedes, decidiram dar as mãos e juntar, numa só empresa, todos os seus negócios ligados às novas soluções de mobilidade. Por todo o mundo, os grandes fabricantes de automóveis começam a entrar nos mais recentes negócios do setor, como o carsharing ou o ride-hailing, ou a associar-se às startups que vieram revolucionar a forma como nos movimentamos nos grandes centros urbanos, como a Uber, a Lyft ou a Mytaxi, entre outras. E a razão é simples: este poderá ser um dos maiores negócios do planeta dentro de uma a duas décadas. Segundo um estudo da consultora PwC, o mercado dos veículos partilhados terá um valor de 1,2 mil milhões de euros em 2030. Poderá representar cerca de 22% das receitas da indústria automóvel e 30% dos seus lucros. A população mundial está cada vez mais concentrada nas grandes cidades e quase 50% é millennial, uma geração que vê a mobilidade como uma experiência pessoal, integrada, multimodal e disponível a qualquer momento. Para eles, as suas deslocações deixam de estar centradas num objeto físico chamado carro e passam a depender do serviço disponibilizado nos seus telemóveis, através de uma aplicação. “A interação e a funcionalidade entre o utilizador e o veículo é cada vez mais importante. O carro será apenas o exoesqueleto dessa relação”, explica Christoph Grote, vice-presidente da BMW Electronics. E, para ir ao encontro das novas necessidades da população, os fabricantes de automóveis estão agora dependentes da tecnologia – de muita tecnologia. “Estamos a assistir a um grande movimento de compras e parcerias com empresas da área tecnológica. Isto acontece, porque os tradicionais fabricantes de automóveis não têm o conhecimento nem a agilidade destas empresas tecnológicas”, explica Diogo Nuno Santos, partner da consultora Deloitte, responsável pela área da mobilidade. Foi o que aconteceu recentemente com a BMW, que escolheu a portuguesa Critical Software para criar uma empresa de raiz, a Critical Tech Works, que irá desenvolver software para as novas soluções de mobilidade do gigante alemão. “A BMW quer ser a número um de serviços de mobilidade e está a fazer a transição de uma empresa de engenharia mecânica para uma companhia de engenharia de software. É uma transformação brutal, que não acontece em mais nenhum setor de atividade. As pessoas querem uma experiência de utilização e de interação com os serviços de mobilidade, e as empresas precisam de garantir, com alguma escala, a capacidade de resposta a estes desafios”, justifica Gonçalo Quadros, CEO da Critical Software. JOGADA DE ANTECIPAÇÃO Com as novas empresas tecnológicas a ameaçarem roubar o negócio secular da indústria automóvel, a resposta da BMW e da Mercedes foi talvez a mais ousada entre todos os seus pares. Juntas vão ficar com dois negócios de carsharing, o Car2Go e o DriveNow, uma empresa de gestão de parques de estacionamento e a Moovel, uma aplicação que ajuda o utilizador a decidir qual a melhor forma de deslocar-se no seu caso específico em determinado momento, comparando os vários meios de transporte, os preços e a duração da viagem. Controlam ainda a Mytaxi, uma empresa concorrente da Uber, com mais de 70 milhões de utilizadores registados e com 108 mil táxis disponíveis em 50 cidades de 10 países europeus. Porém, os projetos não se ficam apenas pelos automóveis. A Mercedes é acionista da Hive, uma empresa de trotinetas, cujo projeto-piloto foi realizado em Lisboa. Além das empresas que controlam, o grupo alemão agrega ainda parcerias com algumas das principais startups do setor da mobilidade, como a Uber, a Via, a Moovit e a May Mobility. Um leque de ofertas que, mais tarde ou mais cedo, acabará numa única aplicação disponível no telemóvel que vai interligar tudo. A General Motors, que já foi o maior grupo mundial do setor, também está a tentar colocar-se nas primeiras linhas desta corrida. Além de ter criado uma empresa de carsharing, a Maven, decidiu fazer parcerias, quase em simultâneo, com os dois maiores rivais do setor dos carros partilhados com condutor (ride-hailing), a Uber e a Lyft. A Ford também já avançou com uma solução de carsharing, a Smart Mobility, e quer, segundo o CEO da empresa na Europa, Joe Bakaj, ser “o maior fornecedor de soluções de mobilidade em todo o mundo”. A Volkswagen, por sua vez, criou uma empresa de carsharing, a Moia, e investiu 300 milhões de euros na Gett, uma empresa concorrente da Uber, sediada em Israel. O Grupo PSA avançou com a eMov, empresa de carsharing com carros exclusivamente elétricos, e a Toyota tem a Yukõ, com uma frota de veículos híbridos, e investiu, tal como a Honda, na Grab, uma startup de mobilidade que opera no Sudeste Asiático. Para Sampo Hietanen, CEO da MaaS Global, “a mobilidade como um serviço já não é apenas levar o cliente de um ponto A a um ponto B. É dar resposta a todos os pontos A e B dos utilizadores”. Para já, o carsharing e o ride-hailing são as grandes apostas, ou aquelas em que é mais visível o investimento dos fabricantes de automóveis. No futuro, estes dois negócios tenderão a ser um só, com a chegada dos veículos autónomos que não necessitam de condutor, pois para o utilizador será indiferente chamar um carro de uma frota de carsharing ou de ride-hailing. RUMO À AUTONOMIA Mais tarde ou mais cedo, o futuro irá passar pelos carros autónomos e, nesta corrida em particular, não é nenhum dos grandes fabricantes que está na dianteira. A pole position pertence ao gigante tecnológico Google, que criou uma empresa específica só para esta área: a Waymo. Os seus carros já fizeram testes em mais de 7 milhões de quilómetros de estradas, em 25 cidades, o que lhes permitiu acumular dados que vão atualizando diariamente o software que irá gerir os automóveis. Aliás, a Waymo foi a única empresa que já testou veículos autónomos no Nível 4 (o penúltimo dos cinco graus da condução autónoma, no qual um carro pode circular sem a ajuda do condutor, mas apenas em zonas pré-demarcadas), com passageiros que se ofereceram como voluntários para os testes. Até agora ainda ninguém atingiu o Nível 5, no qual o carro é de tal maneira independente que não necessitará de volante nem de ninguém a controlá-lo. Apesar de ainda não estarmos nesse ponto, muitos são os consultores que admitem que a mobilidade das grandes cidades assentará nessa tecnologia. Por essa razão, há muitas empresas de base tecnológica a apostarem neste mercado, muitas delas cobiçadas pelos construtores tradicionais do setor automóvel. A General Motors, por exemplo, comprou a Cruise e decidiu fazer desta empresa o pilar de toda a sua revolução de carros autónomos. Tem como objetivo ter um veículo de Nível 4 no mercado já no final deste ano. Para acelerar esse projeto, a General Motors conseguiu um investimento superior a 2 mil milhões de euros por parte do fundo japonês Vision Fund, que apenas aposta em novas tecnologias. O caminho para a condução autónoma total ainda é longo e perigoso. Até agora, nas fases de testes, apenas se registaram dois acidentes com vítimas mortais. Um da Uber Technologies e outro da Tesla – neste último caso, estava a ser usado um programa de assistência ao condutor. Apesar das intenções da General Motors, os outros fabricantes estão a ser mais cautelosos e não falam de colocar carros autónomos nas estradas antes do final de 2020, precaução que não é sinónimo de estarem parados. Bem pelo contrário. Veja-se o caso da Mobileye, uma subsidiária da Intel, o maior fabricante mundial de processadores, que desenvolve tecnologia de visão para sistemas avançados de assistência ao condutor. BMW, Nissan e VW já têm parcerias com esta empresa para desenvolver os sistemas que permitam prevenir e evitar colisões dos seus futuros carros autónomos. Apesar de todos estes investimentos, os carros autónomos ainda são muito caros e podem demorar a conquistar o seu espaço no mercado. Como exemplo, um Chevrolet Bolt normal custa o equivalente a 35 mil euros nos EUA, mas o mesmo carro com tecnologia que lhe permite andar sozinho atinge os 200 mil, quase seis vezes mais. Como poderão os autónomos concorrer com este diferencial de preços? Para Diogo Nuno Santos, a “sua maior taxa de utilização irá diluir o custo de aquisição. No extremo, um veículo partilhado autónomo terá um custo de utilização cerca de um terço inferior ao da mobilidade atual”. Segundo um estudo da Goldman Sachs, os táxis-robô – ou seja os carros totalmente autónomos – poderão incrementar o negócio do ride-hailing dos atuais 5 mil milhões de euros para cerca de 275 mil milhões de euros em 2030. Sem condutores, as margens de lucro poderão atingir os 20%, mais do dobro das alcançadas na venda de carros. São muitos os operadores que querem uma fatia deste bolo de milhões, mas a corrida é longa e nem todos irão chegar ao fim. Para singrar neste mercado, há que ter uma marca forte que facilmente seja identificada pelos consumidores, uma frota grande, ágil e bastante disseminada, e tecnologia que se adapte às necessidades dos utilizadores. “Em algum momento no tempo, iremos assistir à consolidação do setor. E, por aquilo que a experiência nos tem mostrado em casos semelhantes, terá mais sucesso quem tiver a melhor tecnologia”, remata Diogo Nuno Santos. Fonte: http://visao.sapo.pt/actualidade/economia/2019-05-12-Sera-esta-geracao-a-ultima-a-ter-carro-proprio-